Este paper redigido em Maio de 2022, visa explorar exclusivamente e com lentes focadas na fase processual civil da execução, quanto a possibilidade de penhoras de criptomoedas com vistas à satisfação de créditos em face de devedores detentores dessas moedas criptografadas.
Com a evolução do dinheiro que passou a ser cada vez mais imaterial em decorrência do inevitável desenvolvimento tecnológico, foram criadas inúmeras moedas digitais e criptografadas sem a intermediação de órgãos reguladores, provenientes de um software que abriga um sistema de correntes de blocos denominada “blockchaim”, que também é tido como um livro razão público onde todas as transações de criptomoedas são expostas e impossíveis de serem alteradas.
Pretende-se abordar de forma sintética, evitando-se o aprofundamento da questão tecnológica quanto ao surgimento e a natureza jurídica das criptomoedas, capitaneada pela mais conhecida mundialmente, o bitcoin. Para tanto, apresentar-se-á alguns conceitos básicos dessa tecnologia inovadora e a descrição dos papéis dos atores envolvidos no meio jurídico e econômico, enquanto partes centrais ou periféricas que de alguma forma se relacionarão com o procedimento executivo da penhora dessa moeda criptografada.
Buscou-se o posicionamento atual da doutrina e das escassas jurisprudências, especialmente no âmbito da União Europeia, e de como a penhora de criptomoedas pode ser feita em cooperação dentre estes países membros, especialmente no âmbito do ordenamento jurídico Português.
Oportunamente, também caberá destacar as fragilidades, inviabilidades técnicas, dificuldades e/ou impossibilidades de se atingir a satisfação do crédito, tendo em vista a ausência de procedimentos técnicos-jurídicos adequados, bem como diante da realidade da existência de muitas instituições financeiras descentralizadas que transacionam criptoativos, além de questões imprescindíveis ao acesso das wallets (carteiras) dos executados detentores de moedas eletrônicas.
Finalmente, entende-se por necessário destacar ao longo dessa exposição de ideias os termos técnicos utilizados no mundo das criptomoedas e seus significados que serão descritos a frente de cada termo para facilitar a compreensão.
Uma Breve Síntese Sobre as Criptomoedas
O “Bitcoin é dinheiro digital. É dinheiro assim como euros ou dólares[1], só que não é de propriedade de um governo. Você pode enviá-lo de qualquer ponto do mundo a qualquer outro ponto do mundo instantaneamente, de forma segura, com taxas mínimas ou sem taxas”[2].
Trata-se de uma tecnologia acessível a qualquer pessoa que tenha acesso à internet, capaz de se apresentar como uma solução que afasta a inflação[3] provocada pela emissão de moeda[4] pelos bancos centrais espalhados pelo mundo, fazendo recair sobre os cidadãos os efeitos da perda do poder de compra.
Surgiu por meio de um paper[5] desenvolvido por Satoshi Nakamoto, entitulado “Bitcoin: Um Sistema de Dinheiro Eletrónico Ponto-a-Ponto”, documento enviado para uma lista de e-mails formada por especialistas em criptografia da década de noventa, profissionais especialistas que se denominavam ou foram denominados como Cypherpunks[6].
A criptografia é uma maneira de uma mensagem ser enviada de uma pessoa para outra de forma segura, por exemplo quando usamos a aplicação WhatsApp no telemóvel, esta que disponibiliza uma criptografia ponto a ponto, ou peer to peer, que é uma das ferramentas utilizadas na tecnologia do sistema de dinheiro ponto a ponto, de forma altamente elaborada e utilizada no sistema das criptomoedas.
Entretanto, esse conceito que no final da primeira década deste milênio começou a ser difundido e utilizado, foi fruto de décadas de estudos, sendo ainda um mistério a identidade do criador, ou grupo de criadores, sendo o «Autor» (des)conhecido pelo pseudónimo Satoshi Nakamoto, quando divulgou o aludido paper de nove páginas, e demonstrou ter conseguido criar um sistema totalmente inviolável de criação de uma moeda digital, totalmente descentralizada (sem a intervenção de terceiros, governo ou instituições financeiras), que no passado tentaram criar, porém sem sucesso.
O Bitcoin é o resultado da evolução tenológica do dinheiro, a qual tomaremos emprestado a definição de Pedro Martins[7], em que primeiro tínhamos: “Commodities (meios de troca com valor unitário intrínseco); Moedas Físicas (primeira abstração do dinheiro); Papel-Moeda (emitido por bancos comerciais garantido pela moeda física neles depositada; Papel-Moeda (emitido por bancos centrais não garantido por reservas centrais «dinheiro fiduciário»); e Dinheiro Digital (representação de dinheiro fiduciário sem suporte físico)”.
Temos ainda nos dias atuais o uso corrente de papel em espécie, das moedas de metal, e com o avanço tecnológico da internet ele já passou a ser digital por meio dos cartões de plástico (crédito/débito), e das aplicações tecnologicas disponíveis em nossos telemóveis, criados por instituições financeiras.
Ocorre que para a moeda bitcoin funcionar sem a validação e dependência de intermediários, seria necessário eliminar o problema do duplo gasto. Podemos exemplificar o “duplo gasto” como uma pessoa que vende um mesmo imóvel para duas ou mais pessoas.
A compra e venda de um imóvel para ser feita de forma segura, requer a interferência de uma entidade que valide a transação de que o imóvel não foi vendido para mais de uma pessoa, ou seja, o registo predial, na(o) bitcoin, o registro não é feito por uma entidade, mas por todo o sistema, o que somente foi possível pelo uso da criação da função «hash» (uma espécie de selo da transação que precisa ter o algoritimo criptografado resolvido por força computacional que cria a moeda e valida a transação) desenvolvida pelo criptógrafo Adam Back.[8]
Nessa senda, teremos que explicitar o ecossistema incluindo as tecnologias e conceitos de hash, prova de trabalho, blockchain, e mineração, para tudo ser bem compreendido.
Conforme esclarecido por Pedro Martins,[9] hash é uma assinatura digital, em que, “aposta a uma mensagem ou documento, lhe garanta validade e identifique sua autoria”.
Mas a assinatura digital não seria suficiente sem uma publicidade de que a transação realmente aconteceu, como dissemos, dispensando a intervenção de terceiros. Assim Satoshi adicionou um servidor de marca temporal, na qual, na visão do criador[10] “cada marca temporal inclui a marca temporal anterior no seu hash, formando uma corrente, com cada marca temporal reforçando a anterior”.
E aqui chegamos ao conceito de Blockchain (corrente de blocos) equiparado a um livro razão contábil totalmente transparente que registra as transações realizadas, todas decorrentes de uma «prova de trabalho» que desempenhou um cálculo matemático com base na criptografia que soluciona o trabalho daquele hash criado no bloco, e como o próprio Satoshi define[11] “Uma vez despendido o esforço de processamento para satisfazer a prova-de-trabalho, o bloco não pode ser modificado sem refazer o trabalho. Como os blocos seguintes são encadeados após, o trabalho para modificar o bloco inclui também refazer todos os blocos seguintes,” sublinhamos.
Por via de consequência, evidenciamos assim a figura dos «mineradores», estes que recebem uma recompensa (o bitcoin) pelo esforço realizado para resolver a prova de trabalho.
Como Andreas M. Antonopoulos[12] mencionou: “Para participar da rede bitcoin e proteger a rede enquanto minerador, o que é uma função especial na bitcoin, você precisará utilizar bastante força computacional e gastar muita eletricidade. Se você vence essa competição, você ganha bitcoins como recompensa. Essa equação simples cria um sistema de incentivos onde é muito melhor jogar de acordo com as regras do que contra elas. É a teoria dos jogos. É como um jogo de Sudoku gigante”.
Desse conceito também extraímos a altíssima confiabilidade e segurança do sistema, pois para que hackers pudessem violar uma transação seria preciso quebrar todos os blocos até a transação original, entrentando, atualmente não há tecnologia capaz de fazer isso.
E mais adiante[13]: “A segurança está na prova de trabalho fornecida pelos mineradores, e a assinatura digital na transação é colocada por usuários finais com as chaves que eles armazenam. Não há nada de secreto na transação bitcoin”.
É certo que, por não ser o objeto principal desse texto, evitamos aprofundar os detalhes, conceitos e pré-conceitos relacionados à tecnologia do também chamado «dinheiro da internet», mas nos sentimos seguros de que nos foi possível apresentar o mínimo sobre o tema, conforme pretendíamos.
Com essas considerações iniciais, é notável a velocidade com que os impactos do avanço tecnológico tende a ser lentamente absorvido pela sociedade e as instituições, especialmente no tocante ao mercado financeiro tradicional – evitamos aqui abordar todo o potencial imenso[14] do sistema criado por Satoshi – portanto, torna-se parte do intuito deste paper ser, de alguma maneira, a de descrever como esse dinheiro ou «ativo» pode ser objeto de penhora nos termos expressos na lei processual civil portuguesa.
Desmistificando Alguns Conceitos Básicos das Criptomoedas
Além das informações prestadas supra, para facilitar a exposição dessas ideias, importa destacar que a Bitcoin foi a primeira moeda criptografada criada pelo sistema blockchaim, e como o software é aberto e disponibilizado a todo o público, qualquer programador pode livremente copiar a base da estrutura do software de origem e criar outras criptomoedas, conhecidas assim como Alticoins[15].
Outra questão gira em torno do entendimento que é dado quanto a função económica das criptomoedas, chamadas assim quando exercem a função de compra e venda de bens, mas também chamadas de criptoativos, quando servem de recurso voltado a quem a utilize como uma opção de investimento no seu portfólio pessoal ou empresarial.
A grande questão, é que, conforme abordado pelo Professor Doutor José Engracia Antunes, que aderimos, da-se ao fato das criptomoedas possuirem uma «polivalência funcional», que assim defende: “as criptomoedas, para além das tradicionais funções monetárias (meio de pagamento, unidade de conta, reserva de valor), são suscetíveis de desempenhar funções de financiamento, investimento e consumo”[16].
Como dissemos, qualquer pessoa que tenha internet pode ter acesso a criptomoeda.
O detentor de uma criptomoeda possui uma chave pública que é visivel por todos na blockchaim, mas o acesso às mesmas para realização das transações somente pode ser feita por meio da chave privada do detentor da moeda, caso ele possua uma carteira descentralizada. Se perder a chave privada perde para sempre seus recursos.
Outra questão importante, antes de adentrar no conceito jurídico das criptos, dedica-se a compreensão da existência das instituições financeiras privadas centralizadas e descentralizadas.
As primeiras são reguladas pelos bancos centrais de cada país, atendendo a requisitos mínimos para sua operação, geralmente àqueles mesmos exigidos para o funcionamento de bancos ou instituições financeiras congeneres, instituições financeiras descentralizadas não sofrem qualquer regulação estatal, e assim, os titulares de «criptos» aderentes as instituições descentralizadas estão fora do alcance do Estado, o que será pormenorizado em tópico específico, aquando da abordagem quanto a possibilidade de decretação da penhora desses bens digitais criptografados.
Para podermos avançar temos que desmistificar a questão do sigilo ou da rastreabilidade das transações feitas em criptomoedas. Para tanto trazemos à baila que algumas blockchains permitem a rastreabilidade, como o BTC (Bitcoin) ETH (Etherium) e a Litecoin, dependendo de como sua estrutura funciona.
Para tanto, nesse ponto precisamos ser um tanto didáticos facilitar da melhor forma a compreensão do leitor para que possa por si mesmo apreender como funciona, vejamos.
Uma forma de deitar abaixo esse mito pode ser feita por meio de pesquisa no sitio www.blockchain.com, escolher a critptomoeda, selecionar a opção explorar, aceder ao quadrante nomeado “Os blocos minados mais recentemente” e selecionar o bloco de transação mais recente, ou qualquer outro de sua preferência, de acordo com as informações que o Credor tenha disponível, como por exemplo a data de predileção.
Feita essa seleção o observador terá acesso ao resumo da carteira, que geralmente se apresenta como o exemplo a seguir: “Este endereço já transacionou 6,240 vezes no blockchain Bitcoin. Recebeu um total de 21,633.52410130 BTC (US$ 436.565.381,71) e enviou um total de 20,407.24251233 BTC (US$ 411.818.970,19). O saldo atual deste endereço é de 1,226.28158897 BTC (US$ 24.746.411,52).”
No campo «endereço», que possui 34 caracteres, que é visível de forma pública e detalhada as informações anteriomente resumidas, e ao clicar em hash, por exemplo, poderá ver a transação anterior, e a transação que a referida carteira encaminhou por último, encadeando-se na corrente de blocos.
Feita essa pesquisa, o próximo passo ainda nos deixa tateando às cegas a informação. No caso exemplificado acima, um perito ou agente de execução com essa expertise poderia notar que pelo volume de transações provavelmente se estaria diante de uma Exchange por onde a transação do devedor é realizada, mas mesmo assim não se conhece a instituição financeira em questão. Então como rastrear?
Essa resposta seria facilmente aceitável se as transações de criptos entre as pessoas já fossem mais populares, entretanto, o que no momento seria viável de se fazer é partir de uma informação espontaneamente revelada pelo próprio devedor em alguma circunstância, como por exemplo na realização de negócios em que informa a um terceiro o seu endereço público da carteira para receber pagamentos em BTC, da mesma forma que se informa uma agência e conta bancária para o mesmo fim.
Outra forma é o envio de BTC para uma Exchange, que a partir de então a referida instituição financeira consegue fazer o mesmo reconhecimento das transações de origem a partir dessa transação feita pelo devedor, como apresentamos.
Um aparte que fazemos aqui no contexto das transações que passam por uma Exhange, é que a partir desse instante a instituição financeira, que como dissemos – consegue rastrear as transações anteriores – é capaz de verificar se houve transações suspeitas, colocando-as em uma blacklist, cujas informações são geralmente reveladas quando resultam de análise de comportamentos e usos indevidos[17], tanto por governos, por empresas e pelas prórpias Exhanges, como por exemplo negociações feitas em deepweb.
Com as Exchanges centralizadas, tais informações devem ser compartilhadas com órgãos internacionais de combate à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo, órgãos reguladores, autoridades monetárias ou entre bancos para fins de ajuda mútua em compliance. Essas empresas conseguem perceber muitas vezes por indícios e rastos de transações de entrada e saída muito próximas por um mesmo endereço.
Primeiras questões frente as penhoras de criptos
Nesse contexto, o que concluímos – de momento – como mais viável nessas espécies de penhoras seria por meio de um mandado judicial que obrigue o devedor a apresentar extratos bancários, e de posse dessas informações verificar se o Devedor fez envio de moeda fiduciária (euros) para uma Exchange, e, constatada essa transação, oficiaria-se a instituição financeira “Exchange” com ordem de bloqueio, quem sabe com a determinação complementar de realizar o estorno de tais valores.
A questão técnica que nos esbarramos aqui é que se o estorno não for viável, a Exchange geralmente também não tem a posse da chave privada do cliente, e o devedor não forneça a sua chave privada, nem a Exchange poderia sacar os valores em euros para transferir para a conta do credor ou para outra conta informada pelo juízo.
Entretanto, vemos que o vácuo legislativo de uma providência que vise sanar essa questão poderia ser suprida com a determinação de uma multa diária até que o devedor informasse a chave privada para que a satisfação do crédito seja finalizada. Mas e se o devedor alegar ter perdido a senha, o que fazer?
Um caso real que serve como um exemplo da atuação do justiça em face daqueles que se utilizam das criptomoedas para fins ilícitos está no resultado da condenação de prisão perpétua do criador do Marketplace Silk Road[18], cujo departamento de justiça norte americano apreendeu mais de 70 mil (btc), que chegaram a ser avaliados em 1 bilião de dólares, tendo o próprio governo leiloado as moedas digitais, o que pode ser encarado também como uma “lavagem de dinheiro inversa”, mediante, é claro, por meio da disponibilização da chave privada de um outro hacker que havia furtado os BTC do condenado e guardado numa carteira fria, ao ser descoberto, as transações rastreadas comprovaram que vieram da empresa do Ross Ulbricht, valores que serviram para a realização de um acordo que pagou a vultuosa multa da condenação, e que ainda lhe rende dinheiro mesmo estando preso.
Natureza Jurídica
Na lição trazida pelo Professor Doutor José Engracia Antunes, em sua obra “As criptomoedas”, o doutrinador apresentou diversos aspetos multidisciplinares em relação a natureza jurídica das criptomoedas em reflexo nos diversos ramos do direito[19], o que certamente é objeto de muitas reflexões.
Entendemos que, relativamente à penhora, o código de processo civil português já apresenta diretrizes que podem ser extraídas do Artº. 735º, uma vez que, na inteligência do nº 1 “Estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”.
Ora, se as criptomoedas ou “ativos” não estão relacionados àqueles bens previstos no artº. 736º do CPC, tidos como impenhoráveis, ao contrário, nos termos do nº 1 do artigo antecedente, e de acordo com o já explanado relativamente a sua natureza juridica, as criptos podem e devem ser objeto de penhora, pois possuem valor capaz de satisfazer o crédito.
Outra questão, que podemos dizer curiosa, e que pode oferecer uma interpretação quanto à natureza jurídica, especialmente aquando da execução do atos de penhora e de arresto de bens, está no fato, de que, em muitos casos, a apreensão das criptomoedas pode ser realizada com a custódia do dispositivo físico do token, à exemplo de uma pendrive[20].
Ousamos dizer que, independente da natureza jurídica, ressalvados os bens que a lei determina como impenhoráveis, o bem que tem conteúdo patrimonial e que pode ser atingido pela atividade executiva pode ser penhorado, ademais, conforme veremos adiante, o mecanismos de penhora das criptomoedas, assemelham-se ao que já é determinado para a penhora de bens móveis art.º 764º, ou de depósitos bancários do artigo nº 780º, que adiante abordaremos algumas possibilidades de adequação.
Atores do sistema Económico, Jurídico e Legislativo
Referimo-nos aos atores do sistema económico nas figuras das instituições financeiras, designadamente os Bancos Centrais, as Exchanges centralizadas, e as descentralizadas sem registo no banco de portugal, o Banco Europeu, dentre outras.
Como atores do sistema jurídico temos os profissionais operadores do direito, como Advogados, Solicitadores, Juízes, Promotores de Justiça, investigadores e demais Autoridades Policiais, Avaliadores, Peritos, Oficiais de Justiça e os Agentes de Execução.
Podemos ainda incluir como atores, os servidores que prestam serviços administrativos ao Estado, como àqueles pertencentes ao Instituto dos Registos e do Notariado, e finalmente os membros dos parlamentos europeu e português, responsáveis pela edição de leis capazes de sanear as questões relativas a regulação ou não desses bens digitais.
A menção a esses «atores», pois eventualmente podem haver outros, faz-se necessário para adentrarmos no ponto fulcral do presente paper: o penhora de criptomoedas.
A Penhora de Criptomoedas
Necessário se faz, nesse momento, remetermo-nos ao introito deste paper, para reiterar a apertada delimitação desse tema. Referimo-nos aqui ao pretendido recorte do momento processual que culmina na determinação da penhora, que também é o resultado de uma execução da sentença condenatória, cuja ausência de um processo de execução a sentença não teria eficácia[21].
Com isso queremos nos posicionar no sitio onde nos encontramos próximos ao resultado final da espécie de ação disposta no nº 4, do artigo nº 10º do CPC, qual seja à Ação Executiva, cuja tramitação integra fundamentalmente os atos de penhora[22].
Devemos, a partir desse enfoque assumir que já exista um Credor de posse de um título executivo, tais quais como os previstos no Art.º 703º do CPC, e situados nesse momento, analisaremos determinada fase executiva de um processo em que a parte vencedora (Credor), que goza de aptidão para exercer o seu direito de satisfação do crédito dos valores que lhes sejam devidos, que somente podem ser supridos, com: o pagamento voluntário por parte do Executado (Devedor), seja inclusive por meio de prestações convencionadas entre as partes[23], ou, em caso de incumprimento por meio dos diversos procedimentos de penhora.
Quando linhas acima desmistificamos alguns conceitos básicos sobre as criptomoedas, antecipamo-nos com relação a natureza jurídica e a penhorabilidade das criptomoedas, sejam elas consideradas como ativos, ou como moedas.
Com essas exposições, buscaremos de forma escorreita fazer nossas considerações.
Feitas essas recordações, assumimos ainda, que o código de processo civil vigente, a par de uma legislação específica que ainda pode vir a existir para contemplar o procedimento de penhora de criptomoedas, possui em alguns de seus dispositivos a capacidade que permite aos Executores e demais atores de atingir os objetivos pretendidos pelos atos executórios, nomeadamente nos termos do artigos nºs 764º e 780º, do CPC.
O mesmo podemos dizer em relação ao procedimento de conversão do arresto em penhora, previstos nos artigos 391º e seguintes.
Verifica-se, no caso do artigo 764º, relativo a penhora de bens móveis não sujeitos a registo, a nosso ver, percebemos que os nºs 1 e 3 deste artigo se encaixam bem no contexto em que tais bens apreendidos venham a ser uma “cold storage”, como vimos acima se tratar de dispositivos que armazenam a carteira de moedas eletrônicas do executado.
Ao passo que a previsão constante do artigo nº 780º do CPC somente pode ser aplicável às criptomoedas custodiadas em instituições financeiras (Exchanges) «centralizadas», que prescinde ainda da percepção de algum indício de que o devedor possua saldos em criptomoedas em determinada instituição, dentro ou fora de Portugal, caso o Agente de Execução, Solicitador ou Oficial de Justiça, conforme for o ato processual, verifique, por exemplo uma folha de extrato de contas, aquando da busca de bens no domicílio do devedor.
Entretanto, guiando-nos pelas orientações contidas na lei processual civil vigente, importa salientar que o procedimento determinado pelo artigo 780º é cabível para a penhora das Exchanges «centralizadas», mas não para àquelas que operam sem a fiscalização estatal, sendo importante abordar pormenorizadamente como é possível penhorar tais bens em ambos os casos.
Por outro lado, no procedimento de apreensão do mencionado “hardware” autorizado pelo artigo nº 764º, ainda não seria por completo suficiente, pois o proprietário da chave privada precisa aceder com uma senha nessa carteira fria – que aqui representamos numa pen-drive – e recusando-o a fornecer o acesso teria ainda bastante tempo hábil para acessar suas criptomoedas por outro meio na blockchain (até mesmo pelo telemóvel) e transacionar suas criptos, usando até mesmo um terceiro para liquidar o seu saldo e lhe pagar por meio de moeda em espécie, seja euros, dólares ou qualquer outra do interesse do proprietário.
Entre os atores jurídicos na execução de criptomoedas (que já mencionamos) estão em destaques os Solicitadores, Agentes de Execução e os Oficiais de Justiça, pois a quase totalidade das iniciativas exigidas para o cumprimento da execução passa pelo seu exercício profissional, n’algumas vezes acompanhados pelos Advogados, procedimentos que neste trabalho não serão possíveis de se aprofundar nos detalhes, mas cujas referências às disposições no próprio Código de Processo Civil e Códigos Deontólógicos expressam.
Nisso podemos destacar, das diligências prévias do artigo 749º do CPC, ao Auto de Penhora do artigo 766º, que nos possibilita fazer um extenso cotejo em relação aos procedimentos que elencamos em razão das especificidades exigidas para a efetivação da penhora de criptomoedas.
Considerações Finais
Como tratamos ao longo da exposição desse paper, uma vez que as criptomoedas podem ser consideradas de um lado como ativos (penhora de Créditos do artigo nº 773 do CPC) e de outro como moedas (penhora de depósitos bancários do artigo nº 780º), ou ainda se guardadas em uma “carteira fria”, como dissemos “pen-drive”, caracterizando-se como uma penhora de bens móveis art.º 764º, revelando-se assim como várias possibilidades de penhoras que podem ser impostas, a depender da interpretação dos operadores de direito, e os elementos e informações de cada caso.
Importa trazer nessas conclusões a inexistência de decisões judiciais de penhora de criptomoedas em Portugal, mas é de conhecimento que já foram realizadas por alguns Solicitadores[24].
Ressalta-se a importância do conhecimento desse tema pois o próprio judiciário desconhece o seu funcionamento, a fim de se evitar que se expeçam ofícios para instituições que em nada se relacionam com o universo das criptomoedas, bem como da impossibilidade de se expedir ordens de bloqueio a uma blockchain, (por exemplo) pois já sabemos se tratar de um sistema operacional em que não há uma autoridade central que responda pelas transações que nelas são feitas.
Que há problemas de rastreabilidade em exchanges descentralizadas, pois nestas não há qualquer regulação do estado que permita uma comunicação daquelas moedas eletrônicas com as contas das pessoas nos mercados tradicionais.
Dentre as várias reflexões já feitas no corpo do texto há ainda várias outras, a qual podemos encerrar relativamente em face do dever de cooperação para a descoberta da verdade, que, na disposição do artigo 417º do Código de Processo Civil faz um exercício de ponderação, proporcionalidade de direitos e valores fundamentais na questão do acesso a vida privada ou nas telecomunicações, o que também deve ser verificado perante cada caso concreto, mas que entendemos como uma ofensa aos direitos[25] que devem ser mantidos protegidos, pois já são muitos os excessos de intervenção do estado, o que inclusive, destoa completamente do espírito das criptomoedas.
Afinal, as penhoras e o arresto de criptomoedas podem ser convertidos em penhora, mas dependem de muito esforço e desgastes, o que seria recomendável se optar por esse caminho somente quando esgotadas todas as alternativas anteriormente previstas em lei, a não ser que o devedor contribua com informações, ou que uma legislação específica regule com os devidos pormenores a execução de criptomoedas, o que com isso concordamos.
Bibliografias
- Antunes, José Engracia. As Criptomoedas. Almedina, 2021. Ano 81 – Vol. I/II – Jan./Jun. 2021 – Revista da Ordem dos Advogados ROA I/II 2021.
- Antunes, José Engracia. REVISTA ELECTRÓNICA DE DIREITO – JUNHO 2021 – N.º 2 (VOL. 25) DOI 10.24840/2182-9845_2021-0002_0002
- Martins, Pedro. “Introdução à Blockchain; Bitcoin, Criptomoedas, Smart Contracts, Conceitos, Tecnologia, Implicações”. FCA – Editora de Informática, Lda.
- Antonopoulos, Andreas M. A Internet do dinheiro. Coletânea de Palestras, Vol. I. Tradução coletiva – São Paulo: Em Rede Editora, 2018.
- Ulrich, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. – São Paulo Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014.
- Nakamoto, Satoshi. White Paper, disponível em: https://bitcoin.org/en/bitcoin-paper em várias línguas.
- [1] Pacheco, António Vilaça. Bitcoin. Ed. Self. 2022. p. 29. O Autor faz uma declaração relevante que facilita ainda mais o nosso entendimento, ao afirmar “Quando pagamos em dinheiro físico, também não precisamos de uma terceira entidade para garantir essa transferência de valor. Quando muito, precisamos olhar para as notas e moedas para perceber se tem marcas de água ou características que as distinguem de notas falsas.”
- [2] Antonopoulos, Andreas M. A Internet do dinheiro. Coletânea de Palestras, Vol. I. Tradução coletiva – São Paulo: Em Rede Editora, 2018. p. 16
- [3] Banco Central Europeu define Inflação como Aumento Geral de Preços: “Numa economia de mercado, os preços dos bens e serviços estão sujeitos a variações. Alguns preços sobem, outros descem. A inflação ocorre quando se verifica um aumento geral dos preços dos bens e serviços, não apenas de artigos específicos: significa que, com 1 euro, se compra menos hoje do que ontem. Por outras palavras, a inflação reduz o valor da moeda ao longo do tempo.” https://www.ecb.europa.eu/ecb/educational/hicp/html/index.pt.html. Consultado em 28.06.2022 às 22:30
- [4] Alcarva, Paulo. Bitcoin e Blockchain. Guia Prático para perceber, gerar e investir em criptomoedas. Ed. Actual. 2021. pp. 33-35. O Autor revela que a bitcoin ainda não possui as características necessárias para uma moeda ou ativo de sucesso, uma vez que se faz necessária a presença uma massa crítica de utilizadores que façam transações de compra e venda, bem como da necessidade de estabilidade, dentre outros fatores.
- [5] Nakamoto, Satoshi. White Paper. satoshin@gmx.com. Acessível em várias linguas pelo Link direto em: https://bitcoin.org/en/bitcoin-paper.
- [6] Ulrich, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. – São Paulo Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014. p. 41. O Autor remete o termo a “lista de discussão online fundada por especialistas em criptografia”.
- [7] Martins, Pedro. “Introdução à Blockchain; Bitcoin, Criptomoedas, Smart Contracts, Conceitos, Tecnologia, Implicações”. FCA – Editora de Informática, Lda. Na obra o Autor diz “As Alticoins são moedas virtuais alternativas ao bitcoin”. Pág. 38
- [8] Sitio do criptógrafo Adam Back, disponível em: http://www.cypherspace.org/adam/ Consultado em 28.06.2022 às 22:35.
- [9] Martins, Pedro. “Introdução à Blockchain; Bitcoin, Criptomoedas, Smart Contracts, Conceitos, Tecnologia, Implicações”. FCA – Editora de Informática, Lda. p. 28.
- [10] Nakamoto, Satoshi. White Paper. satoshin@gmx.com. p. 2. Acessível em várias linguas pelo Link direto em: https://bitcoin.org/en/bitcoin-paper.
- [11] Nakamoto, Satoshi. Op. Cit. p. 3.
- [12] Antonopoulos, Andreas M. A Internet do dinheiro. Coletânea de Palestras, Vol. I. Tradução coletiva – São Paulo: Em Rede Editora, 2018. p. 48.
- [13] Antonopoulos, Andreas M. Op. Cit. p. 96.
- [14] Referimo-nos a outros produtos originados da Blockchain, como NFT (Non-fungible token) que são “obras de artes digitais” registadas, e transacionadas pela mesma tecnologia das criptomoedas. https://www.deco.proteste.pt/investe/investimentos/mercados-moedas/analises/2021/05/nft-como-criar-onde-comprar-obras-digitais Consultado em 28.06.2022 às 22:15.
- [15] Martins, Pedro. “Introdução à Blockchain; Bitcoin, Criptomoedas, Smart Contracts, Conceitos, Tecnologia, Implicações”. FCA – Editora de Informática, Lda. Na obra o Autor diz “As Alticoins são moedas virtuais alternativas ao bitcoin”. p. 106.
- [16] Antunes, José Engracia. As Criptomoedas. p. 154. Também publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Vol. 81, 2021, pp. 119-187. Disponível em formato .pdf, pelo link direto: https://portal.oa.pt/media/133308/jose-engracia-antunes.pdf
- [17] Há diversas empresas privadas que prestam esses serviços, como por exemplo a https://www.elliptic.co/ ou a https://www.chainalysis.com/ que catalogam todos esses endereços que identificam terem sido usados em sitios de apostas, ou de negócios ilícios realizados na deepweb. Consultados em 29.06.2022, às 22:36; ou outras expressões que verificamos na https://vpnoverview.com/pt/privacidade/navegacao-anonima/dicionario-dark-web/, como: CP ou PN, que é a abreviação de Child Pornography (pornografia infantil), ou HS, do inglês “Hidder Services”, é abreviação de “serviços ocultos” Consultado em 29.06.2022, às 22:41. Observe-se ainda o Relatório de mau uso das critpomoedas feito pela “Chainalysis”, cujas estatísticas são bem altas na darknet e golpes com movimentação próxima de 150 milhões de dólares, disponível por meio de cadastro no link: https://go.chainalysis.com/2021-Crypto-Crime-Report.html Consultado em 29.06.2022, às 22:53.
- [18] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ross_Ulbricht Consultado em 29.06.2022, às 23:30.
- [19] Op.cit, pp. 181-187.
- [20] Antunes, José Engracia. Op. Cit. pp. 175-176. O Autor, a esse respeito, diz-nos: “o armazenamento “cold storage” é realizado em carteiras “off-line”, que não estão conectadas à rede de forma permanente: trata-se de carteiras “hardware”, altamente encriptadas e que geram a sua própria chave privada, funcionando, à semelhança de uma “pen drive”, através de dispositivos USB ou outros similares (v.g., “trezor”, “nano ledger”).
- [21] Ferreira, Fernando Amâncio. Curso de Processo de Execução. Ed. Almedina. 2005. p. 14.
- [22] Geraldes, António Santos Abrantes. Pimenta, Paulo. Sousa, Luís Filipe. Código de Processo Civil Anotado. Vol. I. Parte Geral e Processo de Declaração (Artigos 1º a 702º). 2ª Edição. Almedina. 2020. p. 43.
- [23] Código de Processo Civil, Art.º 795º (Modos de efetuar o pagamento) 1 – O pagamento pode ser feito pela entrega de dinheiro, pela adjudicação dos bens penhorados, pela consignação dos seus rendimentos ou pelo produto da respetiva venda. 2 – É admitido o pagamento em prestações e o acordo global, nos termos previstos nos artigos 806.º a 810.º, devendo em qualquer caso prever-se o pagamento dos honorários e despesas do agente de execução.
- [24] https://portal.oa.pt/comunicacao/imprensa/2022/04/06/solicitadores-veem-penhora-de-criptomoedas-como-inevitavel/ Consultado em 29.06.2022 às 23:37.
- [25] Geraldes, António Santos Abrantes. Pimenta, Paulo. Sousa, Luís Filipe. Código de Processo Civil Anotado. Vol. I. Parte Geral e Processo de Declaração (Artigos 1º a 702º). p. 511.
Sitios e links:
- https://portal.oa.pt/media/133308/jose-engracia-antunes.pdf;
- https://www.ecb.europa.eu/ecb/educational/hicp/html/index.pt.html;
- http://www.cypherspace.org/adam/;
- https://www.deco.proteste.pt/investe/investimentos/mercados-moedas/analises/2021/05/nft-como-criar-onde-comprar-obras-digitais;
- blockchain.com;
- https://www.elliptic.co/;
- https://www.chainalysis.com/;
- https://vpnoverview.com/pt/privacidade/navegacao-anonima/dicionario-dark-web/;
- https://go.chainalysis.com/2021-Crypto-Crime-Report.html;
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Ross_Ulbricht;